• 1-Mascote Cine Retrospectiva 2012 – A Dualidade Mente e Corpo no Cinema
    (por Dr. Luis Arenales, psiquiatra da Clínica Selles)

    Há muito tempo a psicopatologia tem utilizado a arte, a literatura e o cinema para ilustrar a história das doenças. O cinema se tornou um instrumento que ilustra, emociona e nos conduz a complexos temas que versam sobre a experiência humana. O Cine Selles em 2012 elegeu quatro filmes para discutir diferentes formas de sofrimento – Dores do corpo e dores da alma. Os filmes escolhidos partem de uma extensa lista de filmes que abordam as questões da mente e do corpo. Nossa escolha está embasada na capacidade do filme em expressar o tema e seguem um fio condutor para o raciocínio clínico que debatemos na clínica. Muitos outros filmes poderiam ter sido escolhidos, mas partiremos destes e outros surgirão.

    Tema do 1º Semestre – 2012:

     

    Dores do Corpo. Dores da Alma
    Filmes: Hanna e suas irmãs
    (Hannah and Her Sisters, 1986, Woody Allen)
    Elsa e Fred – U
    m amor de paixão (Elsa y Fred, 2005, Argentina-Espanha, Marcos Carnevale)
    Fuso horário do amor
    (Décalage Horaire, França-Inglaterra, 2002, Danièle Thompson)
    O Ruído do Gelo
    (Le bruit des glaçons – 2010,França, Bertrand Blier)

    Indico ao leitor que assista aos filmes para uma melhor compreensão dos comentários aqui apresentados. Se possível, envie sua crítica, comentário ou outra observação que lhe tenha ocorrido. Nosso interesse está na experiência e nos sentimentos que surgem ao assistir um filme. Portanto ela é única, pertence a cada um, e é isenta de críticas e valores.

    Hanna e suas irmãs (Hannah and Her Sisters, 1986, Woody Allen)
    O foco deste filme é “não ter foco”. A trama transcorre, apresenta diversos personagens, com suas estórias particulares acabam se misturando. Em alguns momentos o diretor nos mostra um tema “principal”, para em seguida se dissolver, ‘tirar o foco’, e então se deslocar para outra trama. Assim assistimos ao filme, com estórias entrelaçadas e Hanna – tecnicamente a personagem principal – segue como pano de fundo. Ao passar pela história de Mickey, o personagem interpretado por Woody Allen, nos encontramos com uma personalidade inquieta, ansiosa, sofrendo ante a possibilidade de um diagnóstico de “doença grave”. Uma preocupação em sofrer de um “tumor cerebral”. Este quadro é característico da Hipocondria, ou da Ansiedade para com a saúde. A hipocondria do personagem seria classificada como Hipocondria menor, ou seja, não chega a um quadro delirante pleno. Mickey sofre ainda de apreensão, uma visão catastrófica do mal que supostamente foi acometido. É marcante a cena onde ele imagina o médico relatando que sofre de um câncer inoperável, e logo em seguida, em um plano real, o médico simplesmente entra na sala e diz que os exames estão normais, que ele não tem nada. Mas o “nada” não demove do personagem a ideia de uma doença grave, a ansiedade persiste. A cura vem de uma experiência limite, durante uma tentativa de suicídio frustrada, que foi suficiente para mudar sua vida.

    No filme a ‘doença’ é curada com a experiência limite, mas esta não é a única vivência de transformação. Vale a pena observar a brilhante e bem humorada ação do diretor em apresentar com maestria a renovação e transformação de cada personagem, finalizando com a vida que se renova através da gravidez de sua amada. Não posso deixar de lembrar Guimarães Rosa: “um menino nasceu – o mundo tornou a começar” (Grande Sertão: Veredas).

    O que menos importa no filme é a descrição da hipocondria. Ela é apenas uma pincelada sobre uma faceta de um personagem. Pouco valor por sua importância como fenômeno psicopatológico. O roteiro apresenta, ou melhor, “pinta e borda” com a dinâmica e movimentos dos personagens literalmente humanos. Transportando esta experiência para a clínica com os pacientes: é mais importante estar atento à história, vivências e experiências de cada indivíduo do que eleger um único foco. Um sintoma é apenas uma faceta do ser humano.

     

    Elsa e Fred – Um amor de paixão (Elsa y Fred, 2005, Argentina-Espanha, Marcos Carnevale)
    Particularmente esse filme não me agradou. Talvez por retratar esses extremos da vida. Crianças e idosos, no cinema, sempre nos levam por aspectos “sentimentalóides”, “clichês”, que podem ocultar um bom ou um mau roteiro.

    O filme relata a história de dois idosos. Fred apresenta um campo vivencial restrito. Aposentado, após anos de um único emprego, viúvo e solitário em seu apartamento. A solidão parece ser a própria condição da vida do idoso. Fred tem queixas somáticas diversas, nada tão graves, mas que levam o médico a prescrever medicamentos. Aqui vale ressaltar dois temas importantes na área da saúde: a iatrogenia e o intrusismo médico.

    Iatrogenia – quando o médico produz males ao paciente com seu tratamento inadequado.

    Intrusismo – quando o médico atua em uma especialidade da qual não tem formação adequada, ou seja, o clinico tratando uma doença que foge as suas habilidades como médico.

    A “patologia” de Fred é claramente emocional: solidão, viuvez, falta de perspectivas e apoio familiar pífio e interesseiro. Podemos observar no transcorrer do filme, quando Fred sente-se curado, joga todos os remédios fora, numa clara alusão de que nada sofre, ou seja, aqueles remédios não eram necessários. Fred sofre dos mais comuns dos Transtornos de Ansiedade: o Transtorno Somatoforme indiferenciado. Diferente de Mickey (Hanna e suas irmãs), o quadro aparece com queixas vagas, diversas, que confundem o médico e podem levar a falsos diagnósticos e medicações errôneas. Diferente da hipocondria o paciente toma a medicação sem medo.

    Sua cura vem de Elsa. Elsa é uma personagem narcísica, que busca vive sem medir as consequências, sem se importar com os outros, pois acredita ter que aproveitar a vida no presente. Não se importa a quem faz sofrer neste caminho. Essa energia narcísica atrai Fred (e atrai a todos nós!), o transforma a ponto de retomar o poder frente à filha que o espoliava financeiramente. Fred dá um grito de liberdade, viaja, gasta, joga fora os remédios e volta a viver. O amor narcísico o seduz para o caminho da cura. A energia e vivacidade extrema de Elsa fazem Fred rir de si próprio. A morte não importa mais, a alegria e o prazer venceram. Diz e sorri frente ao túmulo de Elsa: “mentirosa”. Elsa proporcionou uma ilusão nova em sua vida, que gerou esse sorriso final, riu de sua própria ingenuidade, com as parvalhices de sua vida. Fred não precisa mais do corpo, precisa de amor e humor. Que seja feliz!

    Vale lembrar que o humor é uma ótima ferramenta no trabalho clínico diário. Vamos aprender com Fred a rir de nós mesmos.

    Fuso Horário do Amor (Décalage Horaire, França, 2002, Danièle Thompson)
    O mais bonito dos quatro filmes, talvez pela qualidade dos atores que com sensibilidade nos levam ao objetivo do cinema: a arte da ilusão. Suas vidas se entrelaçam e se modificam, pelo amor. Um amor que começa com diálogos rápidos, sucessão de problemas compartilhados, e paulatinamente passam a entrar no mundo íntimo de cada um. Felix é o personagem foco de nossa atenção, sofre de Disfunção autonômica somatoforme. Ele apresenta verdadeiros sintomas físicos detectados pelo médico: tontura e palpitações. E estes sintomas geram apreensão e angústia que retroalimentam estes sintomas. Associado a isso, observamos no personagem uma verdadeira psicopatologia do trabalho, caracterizada como Síndrome de ‘burnout’, ou esgotamento profissional. Seu trabalho é vazio, não tem mais representação para a sua vida pessoal. Felix sai de um trabalho artesanal (chef de cozinha) para montar uma empresa de fast-food global. Então nada tem mais sentido: o vazio de uma produção que não leva a nada. Morto e gelado, como os seus produtos congelados, Felix está sozinho e perdido no mundo. Já não se vê como francês, nem é americano. Mistura as palavras de línguas distintas, fenômeno comum em pessoas bilíngues, mas que para o personagem demonstra a indefinição de sua pátria, de não pertencer a lugar algum. Tal qual o poema de Paul Valéry, com sua previsão da globalização: “…a terra será apenas uma cidade. Nada mais se fará naturalmente – isto é, às cegas”.

    O corpo lhe proporciona a expressão máxima de seu sofrimento psíquico. É a somatização na sua pura definição.

    No decorrer do filme podemos conhecer a história de Félix e perceber que os problemas começaram com as palavras e autoridade do pai, quando ainda era jovem. Sua empáfia, sua conduta de oposição, em não aceitar a correção paterna, a autoridade do pai, o leva a correr pelo mundo buscando seu próprio lugar. Nesta fuga, evita o confronto de uma convivência familiar e se envolve no trabalho vazio. Então o diretor faz com que Felix encontre Rose. Mulher madura, inteligente, viva e bem articulada. Romântica e de origem simples, que também está à procura de si mesma.

    O amor surge para salvar Felix de sua doença de somatização. Rose leva a essa mudança, esse escape de um mundo de alta velocidade, mecânico e globalizado. O conduz a sua bucólica cidade natal onde encontra seu pai que imediatamente o perdoa e recomeça a vida.

    Entre encontros e desencontros, idas e vindas, o amor acaba curando Felix. O relacionamento é íntimo, não sexual, a partir do diálogo da verdade que trava com Rose. O clímax do filme é imperdível – A cena do jantar, onde Felix e Rose fazem o “jogo da verdade”. Ambos acreditam que nunca mais irão se encontrar. Vale a pena respirar com Felix seu novo ar, o perdão de seu pai, sua redenção e volta ao lar, imaginar suas habilidades na cozinha e provar seus pratos. E por fim, vale ainda tomar um banho – de vinagrete ou de chuveiro – com Rose, “lavar a alma” e surgir renovado.

    O Ruído do Gelo (Le Bruit des Glaçons – 2010, França, B. Blier)
    O último filme relata o oposto das somatizações. É a plena consciência do corpo, porém vivida de forma extracorpórea. É o encontro de nós mesmos com a nossa doença, nosso câncer. Todos nós teremos câncer, a questão é saber quando.

    O personagem apresenta um fenômeno psicopatológico interessante: a alucinação. Por definição não poderíamos dizer que é uma alucinação, pois esta é definida como algo que parte do totalmente novo. Para o personagem, a “alucinação” é uma percepção de um corpo prestes a ficar doente, com câncer.

    Refinando esta definição: o personagem principal apresenta uma alucinação autopatoscópica, onde o que ele vê é sua própria doença fora do seu corpo. Ele cria um duplo subjetivo, mas essa cópia de si próprio é na verdade sua doença. Esse duplo é um vaticínio do que nos ocorrerá: o inevitável câncer. O personagem encontra-se em uma vida profissional decadente e um relacionamento afetivo sem nenhum prazer, pois tem uma “Lolita” que nem serve para o sexo. Seus companheiros são o vinho e balde de gelo. Outro duplo subjetivo.

    O vinho dá a ideia de um ‘descarrilamento’ para o alcoolismo. De fato, o personagem tem uma dependência ao álcool, mas é um companheiro aparentemente “saudável”. O pior é a sua visão do “anjo da morte”, uma visão de si próprio refletido no exterior. A “doença” como personagem, esse duplo em formação brinca sobre qual órgão irá se instalar, e por qual mórbido caminho irá levar seu hospedeiro à morte. O personagem tem plena consciência de seu sofrimento e onde ele está localizado: não no corpo, mas fora do corpo. Ele nem é um sofrimento, é uma quase certeza do mal que ronda prestes a entrar em um corpo decadente. A percepção de sua falência de vida é marcante, o personagem sabe que sua vida ruiu.

    Há solução para enfrentar esse mal? Mais uma vez o amor! Desta vez escondido na conflitiva relação patrão-empregada. E por quê? Talvez por sua fidelidade incondicional, talvez pela paixão velada pelo patrão ou ainda por também possuir sua visão autopatoscópica. Essa troca de experiências leva à intimidade, o sexo é uma tentativa de livrar-se da doença, mas falta algo. A cura está em dizer ao parasita que o hospedeiro morreu! Ambos simulam a morte, e ingenuamente os personagens ‘cânceres’ vão embora, pois o “parasita” não mais encontra sentido em estar ali, seu hospedeiro morreu. A morte não serve mais ao câncer. Aqui temos um paradoxo: A cura vem da própria morte. Os personagens doentes morrem e o amor faz ressurgir novos indivíduos prontos para uma nova chance. Partem em um final mítico, uma viagem de barco o vinho e o balde de gelo.

    Fica a mensagem:
    A doença parece rondar ao nosso lado, a espreita, prestes a adentrar em nossos corpos. Qual o antídoto para isso? O Amor.

    O amor é o antídoto, o remédio e a bandagem para as nossas feridas ao longo de nossas vidas.

    Sendo assim, o tema escolhido para o Cine Selles do segundo semestre de 2012: “Amor”. Aguardem novos comentários sobre os filmes escolhidos para as discussões sobre o amor…

    Comentar →

Comentar

Cancel reply