• Feitiço do Tempo

    “E Deus o fez morrer durante cem anos e logo o acordou e lhe perguntou:
    – Quanto tempo esteve aqui?
    -Um dia ou uma parte de um dia, respondeu.”
    (Borges)

    No terceiro filme do ciclo sobre a felicidade, o Cine Selles apresentou um filme genial, simples e direto. A simplicidade está em todo o roteiro e desenrolar sequencial do tema. Em resumo, é um filme de um indivíduo preso em um lapso de tempo, por alguma razão – não há explicação para esse motivo, e talvez nem necessite. O fato é que o sujeito está lá, parado numa angustiante situação onde não consegue mais sair, nem com a morte!

    Convido os leitores a ver o filme. Depois de assistir, assista outra vez… E outra vez… É como reler um livro, aonde em cada momento vamos encontrando palavras que não havíamos nos dado conta. O filme mostra inicialmente o tédio do personagem, sua condição de tristeza causada pela desmoralização de um trabalho sem glamour, e que se manifesta por egoísmo e desdém pelas demais pessoas. Ele fala em conseguir um trabalho melhor, ou mais importante, mas ninguém lhe dá crédito. Acredita ser um “astro” das notícias, mas continua sem causar nenhum interesse por parte das pessoas que o cercam.

    A mágica acontece: ele fala sobre o tempo meteorológico, mas é o tempo cronológico que o agarra! Sua visita na pequena (mas “ridícula” em sua opinião) cidade da marmota o traga para uma experiência inusitada: fica paralisado no tempo.

    Tudo que ele não pediu a Deus! Talvez aos nossos olhos pudesse ser uma dádiva, mas ele entende como um castigo. Tenta de todas as formas livrar-se desta incômoda situação: suicídio, tédio, apatia, e nem percebe que a saída deste labirinto pode estar na música de Cher e Sonny que toca todas as mesmas manhãs as 6:00! A música fala de um amor que basta por si mesmo, simples, ingênuo. Ele anseia algo por Rita, mas o caminho do amor não lhe toca o coração.

    Este é o ponto em que entramos no tema da Felicidade: ou a virtude como um caminho para o bem. A virtude como a única forma do bicho-homem se despregar de sua condição animal e ascender, aspirar, tocar a essência de ser homem.

    Na discussão também tocamos no tema do movimento humano para o outro, como uma forma de se realizar. Viktor Frankl estava conosco. Esse autor fala da busca de uma razão para ser feliz, e não a felicidade como algo final. O caminho é o que gera a felicidade, a ação é que produz a sensação de felicidade. Desta forma as virtudes que o personagem vai cultivando e treinando no decorrer do filme gera essa sensação de bem estar. O personagem (ou o diretor) leu Aristóteles? Pois é Aristóteles que nos ensina que a virtude é algo adquirida, que nos transforma e nos torna homens. A virtude é uma disposição adquirida de fazer o bem, e o bem não é para se contemplar é para se fazer.

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    A pergunta seguinte seria: por que fazer o bem gera felicidade? Por que o personagem escapa de sua maldição ao alcançar e praticar diversas virtudes?

    Esse é o ponto que desejamos alcançar com esse filme. Recapitulando os filmes anteriores: no primeiro, Sem Limites (Limitless), falamos da felicidade moderna – precisamos da felicidade e bem estar a qualquer preço, principalmente obtendo sucesso. O que não é tão moderno. Em Fausto, Goethe ilustra muito bem tal necessidade, o pacto diabólico para alcançar a felicidade acaba tornando-se uma armadilha. No segundo, com o documentário Quem se Importa, discutimos o Amor como um caminho para a felicidade, onde o altruísmo gera a sensação de bem estar único e nos regozija com o raro prazer da felicidade. Com Feitiço do tempo retornamos para a felicidade a partir da filosofia, pois esta por definição tem como objetivo a felicidade. A filosofia que nos ensina as virtudes como um modo de nos sentirmos além, de transcender, de nos afastar da bestialidade de ‘bicho-homem’ e alcançar o Homem. Além disso, a virtude nos concede uma sensação de eternidade. Ela também nos proporciona a sensação de pertencer a um grupo. Estar ou se voltar para o outro, acarreta uma sensação de ampliação do tempo vivido e gera esse raro sentimento de felicidade.

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    O filme mostra o quanto sofremos em um mundo acelerado e egoísta. O personagem amadurece, aprende que através de valores pessoais e ações pode se transformar em um herói da pequena cidade. Mas não era o status de Herói que ele buscava. Também não é o desejo por Rita que o fez melhor; ele diz textualmente quando ela o convida para um café: “tenho coisas a tratar…”, e sai pela cidade em pequenas tarefas. É emocionante sua corrida para segurar o menino que cai da árvore. Também aprende os limites do ser humano: não é possível salvar o velho da morte. Sofre, mas aprende que a morte “são tantas quantas as pessoas, não possuímos sentido que nos permita ver, correndo a toda velocidade em todas as direções, as mortes, as mortes ativas dirigidas pelo destino a este ou aquele” (Proust)

    Aprende que a arte pode ser algo técnico – repetitivo como o piano e as esculturas, mas é um caminho para recuperar sua individualidade e gerar um sentido de si mesmo. Tudo culmina na admiração aos olhos de Rita, esta fica estupefata pela transformação de sua personalidade, que no dia anterior era um rabugento, e durante o ‘Groundhog day’ um notável, admirado e cobiçado solteiro da pacata e acolhedora cidade! Incrível transformação! Ela não hesita em desembolsar todo o seu dinheiro para comprá-lo, em uma lúdica festa, e desfrutar da irradiante magia que emana do personagem no final do dia. Daquele dia que parece ter durado mais de seis meses, ou anos, nem sabemos ao certo quanto tempo durou a magia, mas o certo é que ele conseguiu uma dádiva, uma autorização para desfrutar e aprender em um único dia (ou uma vida) que a felicidade pode ser construída através da virtude. E, para nosso alívio ou lição, segundo a filosofia: – a virtude pode ser aprendida!

    Para finalizar o semestre, e a discussão sobre FELICIDADE, o Cine Selles apresenta no dia 27 de junho “Sete anos no Tibet”.

    A espiritualidade traz a felicidade?

    Bibliografia:
    A prisioneira, Marcel Proust – Editora Globo 13ª edição – 1998 – São Paulo

    La Felicidad Desesperadamente, André Comte-Sponville – 2008 – Paidós – Buenos Aires – Argentina.

    El Milagro Secreto, Jorge Luis Borges, 2011 – Obras Completas tomo I – Editorial Sudamericana – Buenos Aires – Argentina.

    Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville – Martins Fontes – São Paulo – 2012.

    http://www.youtube.com/watch?v=OqqyqQaFBQc (Filme)
    http://www.youtube.com/watch?v=xzW_7ANnHZI (Sonny & Cher – I Got You Babe)

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